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Fabiana Cozza desiste de ser Ivone Lara em musical de teatro por conta de protestos

Publicado em 04/06/2018

Fabiana Cozza desiste de ser Ivone Lara em musical de teatro por conta de protestos

A renúncia foi feita ontem por conta de protestos que vinham acontecendo em redes sociais pela escolha da cantora paulistana – em foto de Kriz Knack – para interpretar Ivone no espetáculo que vem sendo orquestrado sob direção musical de Rildo Hora.


Em texto publicado na manhã de ontem nas páginas do espetáculo e da artista no Facebook, Cozza justificou a renúncia e reaçou o fato de ser negra. Em que pese o fato de Cozza ser negra e de ter toda a propriedade musical para dar voz e vida a Ivone Lara, inclusive pelo fato de já ter cantado com a sambista em disco e show, a realidade é que, se a escolha foi acertada sob ponto de vista estritamente musical, os protestos põem em cena uma questão complexa no Brasil, ainda que algumas vozes tenham se levantado em tom desnecessariamente agressivo, desconsiderando a legitimidade de Cozza como negra e artista de talento reconhecido.


A questão é que Cozza é negra de pele clara – ou parda, como está na certidão de nascimento da artista, informação destacada na abertura do texto em que Cozza se apresentou como filha de pai negro e mãe branca – e Ivone Lara foi negra de pele escura. Por mais que a negritude, o talento e a legitimidade musical de Cozza sejam inquestionáveis e a credenciem para o papel da protagonista do musical, inclusive por conta da luta da artista pela valorização da negritude no Brasil, há razão também do lado de quem protestou sem atacar a artista, mas com o argumento de que ainda são poucas as oportunidades para atrizes negras de pele escura ocuparem o lugar de protagonista no palco.
Afinal, Ivone Lara – em foto de Silvana Marques – existiu de fato. Em bom português, o espetáculo Dona Ivone Lara – O musical vai retratar uma personagem real, não uma pessoa fictícia criada pela imaginação de um dramaturgo com a cor da pele que o autor determinar. E, pelo simples fato de Ivone Lara ter existido e ter sido negra retinta, há também razão na visão de quem entende que a personagem real deve ser interpretada em cena por uma atriz e/ou cantora de pele igualmente escura.
 
Não é uma questão de quantificar a melanina para legitimar (ou não) a escolha de uma atriz, mas de ter entendimento de que, no Brasil, mulheres de pele escura tiveram historicamente que lutar mais contra o preconceito em batalha que ainda se desenrola no cotidiano de cada uma delas.


Sim, Fabiana Cozza tem legitimidade para representar Ivone Lara no teatro. Inclusive por ser negra. Mas nem por isso quem protesta (sem agressividade) contra a escolha da cantora deve ser apontado instantaneamente como preconceituoso. A questão é complexa e ainda suscita debates feitos de forma pacífica, sem ferir a liberdade artística e tampouco a liberdade de expressão.

 

Eis o texto escrito por Fabiana Cozza para justificar a renúncia ao papel de Ivone Lara:


"Fabiana Cozza dos Santos, brasileira
Nascimento: 16 de janeiro de 1976
Mãe: Maria Inês Cozza dos Santos, branca
Pai: Oswaldo dos Santos, negro
Cor (na certidão de nascimento): parda


Aos irmãos:


O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical Dona Ivone Lara – Um sorriso negro após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres - que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.


Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.


Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.
 
Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.


Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas...


Ao lado de vocês, irmãos.
Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.


Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.


Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.
Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.
 
Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.
Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.


Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.
Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá."


Fabiana Cozza